3o. ano da Faculdade, dia de prova de Direito Civil. Eu já não era mais a mesma aluna exemplar de outros tempos, trabalhava 10, 12 horas por dia, e estudar não se encaixava na minha rotina.
Estava levando na Faculdade meio
"nas coxas", contando com uma generosa dose de sorte e com a ajuda dos amigos solidários que me emprestavam resumos para eu pelo menos "dar uma lidinha" antes da prova.
Sorte que o
Tico e o Teco sempre foram eficientes, então a inteligência manteve-se preservada, mas não há inteligência que resista a tanta negligência.
Eu odiava a professora. Tinha problemas pessoais com ela, uma longa história, mas basicamente éramos "concorrentes" e ela usava e abusava do seu poder de professora pra me atingir. Não que essa informação tenha alguma relevância na história que estou tentando contar, mas me deu um prazerzinho mórbido escrever aqui que sim, eu odiava aquela vaca magrela e nariguda.
Voltemos à prova. Professores cretinos adoravam fazer um terrorzinho extra, então não levavam as questões impressas, e para nos fazer sentir como crianças da 5a. série, ditavam a prova, fazendo-nos perder tempo precioso para o desenvolvimento das questões. Preciso nem dizer que a bruxa magrela e nariguda era desta laia, né?
Acontece que enquanto ditava as questões, ela andava pra lá e pra cá, e eventualmente algum trecho do que dizia parecia confuso. Os mais corajosos a interpelavam dizendo não terem entendido, mas os mais orgulhosos (eu) se recusavam a admitir que tinham perdido algo no ditado.
Copiei as questões e parti para o que interessava. Tinha assistido pouquíssimas aulas de Civil naquele bimestre, era época de eventos na Globo e eu vivia mais no Rio do que em SP, então estava bem perdida na matéria, sabia nem qual parte do Código Civil estávamos estudando, e justamente para aquela prova não tinha rolado nenhum super resumo salvador da pátria pra me dar uma mãozinha.
Tive que encarar... Eu, o Tico e o Teco. E a minha capacidade singular de ter uma resposta pra tudo, sempre, até para aquilo que não existe.
Acontece que eu copiei uma questão errada. Entendi uma palavra e era outra, e na lógica da minha cabeça desorientada parecia fazer todo o sentido uma questão que pedia para explicar e exemplificar casos de
vícios noturnos e erupção, quando a questão, na realidade, referia-se a
vícios ocultos e evicção.
Fiz a prova. De 4 questões, eu sabia com certeza apenas 1. As outras eu teria que desenvolver, e pra isso tinha uma técnica que quase sempre funcionava: Pegava uma expressão da questão sobre a qual eu sabia alguma coisa e discorria sobre ela, ainda que não estivesse exatamente respondendo a pergunta. Geralmente funcionava porque era uma forma de demonstrar alguma familiaridade com a matéria, e eu sempre imaginava meus professores (a maioria velhinhos de mais de 70 anos) lendo a milésima prova e tendo a capacidade de raciocínio já levemente afetada pelo cansaço.
Acreditem, cheguei a tirar nota 10 em provas assim. Eu não tinha nem chegado perto de responder a questão, mas tinha escrito sobre o assunto e o professor acabava considerando.
Era a minha estratégia para aquela noite, na prova de Direito Civil. E, vocês sabem, encher linguiça é comigo mesma, eis uma arte que sempre dominei, então até pra responder o que eu não sabia, geralmente precisava de folha complementar... abusada, né?
Assim também aconteceu com a questão sobre os
"vícios noturnos e erupção". Redigi meia página explicando os efeitos dos vícios noturnos e como eles poderiam provocar a erupção de uma relação jurídica, dei exemplos, mais de um, e entreguei a prova feliz da vida, ela todinha respondida, certa de mais um notão. Eu era uma gênia!
E então chegou a próxima aula, e a magrela nariguda, como sempre fazia, trouxe as provas pré-corrigidas para concluir a correção em conjunto com a sala, e eu estava lá,
"a cara da tranquilidade", enquanto outros colegas se borravam de medo por terem ido mal na prova, eu estava certa de que, mais uma vez, tinha sido ajudada pela sorte e pela minha prolixidade.
Aí chegou-se à questão dos vícios ocultos e evicção. E a professora olhou pra mim com um sorriso sarcástico no rosto, seus olhos brilhavam, e eu enfrentava seu olhar desaforado de peito estufado, porque, né? Tinha certeza que ela estava impressionada comigo.
(o que só prova que em certas situações na vida a gente devira realmente poder ficar invisível. Fica a dica, pra quem puder.)
Ela começou a explicar a questão, a fazer uma rápida revisão sobre os vícios ocultos e evicção, e a cada vez que pronunciava
"ocultos" e "evicção", ela olhava pra mim desafiadoramente. Eu demorei a me tocar. Lá pela 5 olhada, mais ou menos, me liguei que tinha feito alguma merda. E não, não consegui ficar invisível.
"Dona Farta Aguilharrrrrrr", ela disse, puxando o "R" como se fosse carioca...
"...Eu nem ia mencionar sua prova na presença dos colegas, mas decidi que ela merece ser usada como exemplo e lição, então não se ofenda, mas precisarei contar que você inventou uma nova teoria sobre o direito das coisas..."E DEU-SE A TRAGÉDIA.
Obviamente ela relatou meu mico com riqueza de detalhes. Obviamente os outros 99 colegas de uma sala com 100 alunos ficaram espantados e riram até perder o fôlego. Obviamente eu fiquei roxa. E obviamente ninguém esqueceu disso até hoje. Sim. Eu sou uma piada pronta. Sempre fui.
Fiquei para exame (recuperação) em Direito Civil naquele ano. Por meio ponto. E tive que estudar muuuuuito porque eu só me permitiria ir à faculdade às vésperas do Natal para fazer uma prova se fosse pra tirar 10. Questão de honra.
Não tirei 10. A bruxa magrela e nariguda jamais me daria um 10. Mas tirei um 8,5 que foi mais que suficiente pra me liberar daquela disciplina. E nunca mais tive o desprazer de cruzar com a profesora maldita.
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O que eu queria mesmo dizer, contando este
causo, é que aprendi uma lição bem importante naquele episódio. Que tudo na vida é uma questão de interpretação. E o exercício da interpretação começa
na compreensão do que se quer interpretar.Eu criei uma questão errada, que sequer existia. E, prepotente, mas sem certeza nenhuma, respondi, fundamentei e exemplifiquei algo que não existe.
Percebem a gravidade disso? Percebem como é grave não compreender um fato, ou descontextualizá-lo?
Percebem como somos levados a erro toda vez que não prestamos atenção nas coisas ou nas pessoas como elas são?
Uma piada fora do contexto, uma brincadeira levada a sério, simpatia confundida com flerte, flerte confundido com simpatia, conselho levado como crítica, crítica levada como inveja... E assim faz-se a guerra, amizades se rompem, relacionamentos esfriam, corações se magoam, etc, etc, etc...
É tudo uma questão de interpretação. Mais que isso, uma questão de "ler" as pessoas como elas são. Porque ninguém é igual a ninguém. E partir deste princípio equivocado fatalmente vai te levar a desvirtuar tudo o que se seguir. E isso pode ter reflexos importantes na sua vida... Isso pode, inclusive, definir o seu futuro.
Algumas pessoas não são óbvias. Nem todo mundo quer dizer SIM, quando diz SIM. Nem todo mundo quer dizer NÃO, quando diz NÃO. Contextualize, sempre!
Vou concluir este
post que já ficou meio piegas (eu sei, eu já fui melhor!) repetindo algumas coisas que
twittei outro dia:
"Gente óbvia e literal é muito, muito chato.
Existe poesia nas entrelinhas, e somente os espíritos livres conseguem enxergá-la.
Gente que não entende piada.
Gente que não entende ironia.
Gente que não entende entrelinhas.
Gente que não entende duplo sentido.
Gente que vê duplo sentido onde não tem.
Gente que só entende se a gente desenhar...
Gente que pensa quadrado, que tem a imaginação limitada pelas fronteiras criadas pela hipocrisia, gente que bate no peito e se orgulha de ser "normal", mas que na verdade é apenas medíocre...
Pois eu sou muito mais os loucos de alma livre que permitem-se enxergar além do óbvio, e não se limitam às fronteiras inventadas pelo pensamento hipócrita."
Era isso que eu queria dizer... reflitam, analisem, permitam-se compreender e interpretar além do óbvio... Há todo um universo de possibilidades... Descubram-no!