quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A menina que não sabia nada.

Era uma adolescente dedicada. De origem muito humilde e anseios maiores que seu corpo graúdo. Uma menina em corpo de mulher. Sobravam-lhe sonhos e ideais, mas faltava-lhe malícia para entender o mundo cão.

Naquele ano, quando experimentava pela primeira vez na vida o prazer de ter seu próprio dinheirinho, fruto de seu primeiro trabalho com carteira assinada, ela vivia de fazer planos. Aos 14 anos recém completados, sentia-se finalmente inserida no mundo real, onde as pessoas podem celebrar datas especiais e presentear-se umas às outras, coisa que nunca acontecia antes, já que a escassez de recursos com que a família vivia era suficiente apenas para a subsistência, sem luxos e sem extravagâncias.

Naquele ano, ela mal podia esperar pela chegada do Dia das Mães. Sempre sonhara presentear sua heroína com algo especial. Sempre passava os segundos domingos de Maio frustrada por não poder dar à mãe mais do que um cartão de cartolina feito na aula de Educação Artística da escola.

Naquele ano, ela finalmente presentearia sua rainha, e a expectativa de ver a reação da mãe, surpresa com um presente "de verdade", lhe deixava inquieta de tanta ansiedade.

Era seu primeiro emprego, e a menina ganhava pouco. Tinha obrigações a cumprir, não trabalhava exclusivamente para si, então precisou traçar uma estratégia para conseguir comprar o presente ideal sem comprometer o orçamento.

Procurou a vizinha sacoleira que vendia enxoval de Ibitinga, e conseguiu um ótimo negócio: Comprou uma colcha de matelassê belíssima, toda em tons de azul e com alguns bordados delicados que lembravam muito o céu. "Darei um pedacinho do céu pra minha mãe", pensou ela, sempre sonhadora. Definitivamente este era um ótimo presente para o seu primeiro Dia das Mães "abonado".

Parcelou o pagamento em 3 vezes sem juros, e pediu à vizinha que guardasse o pacote em sua casa até o grande dia, porque fazia parte do presente o fator surpresa e a cara de espanto seguida de um largo sorriso que, tinha certeza, a mãe faria diante do presente.

Contou os dias, horas, minutos. E acordou mais cedo que o normal naquele 2o. domingo de maio, louca para proporcionar à mãe aquela emoção que, tinha certeza, seria inesquecível.

Deparou-se com os pais travando mais uma exaltada discussão na cozinha, e por um instante frustrou-se de suas expectativas de mudar a história do domingo familiar pelo menos daquela vez. Ficou um tempo observando a briga por detrás da porta, como sempre fazia, até que lhe ocorreu que era uma ótima oportunidade pra escapar até a casa da vizinha sem que a mãe notasse, e assim o fez.

Voltou pra casa com o pacote enorme e conseguiu passar pela cozinha sem que a mãe - ainda muito exaltada na briga com o pai - percebesse. Foi até o quarto, colocou o embrulho cuidadosamente no centro da cama e chamou as irmãs para compartilharem com ela o grande momento. Não conseguia evitar um sorriso maroto nos lábios, apesar do clima tenso dos berros que vinham da cozinha, e decidiu que era aquele o momento.

Muniu-se de toda a coragem que conseguiu e interrompeu a briga dos pais: "Mãe, preciso que a senhora venha até o quarto ver uma coisa". A reação, já esperada, não lhe abalou. A mãe era muito brava e não gostava de ser interrompida pelas crianças, então lançou aquele olhar cortante para a menina e apenas disse: "Não vê que estou ocupada e não tenho tempo pras suas besteiras agora?". Inabalável, a menina estufou o peito e insistiu: "Mas, mãe, é rapidinho... vem aqui!".

A mãe foi, pisando duro como lhe era peculiar, não sem antes soltar meia dúzia de impropérios que a menina nunca compreendia, mas que eram típicos do vocabulário materno quando acontecia alguma briga. Chegou no quarto, viu o embrulho sobre a cama e perguntou também com a aspereza peculiar: "O que é isso?".

A menina, sem conseguir conter o sorriso que neste momento lhe rasgava o rosto de fora a fora, disse em tom mais suave do que pretendia: "É seu presente, mãe! Feliz Dia das Mães!".

A mãe rasgou o embrulho em uma fração de segundos. Observou por uns instantes, lendo alguma informação que estava escrita na embalagem transparente. Abriu o saco plástico e tirou a colcha, ao mesmo tempo em que virava seu corpo em direção à menina para bradar:

"Você enlouqueceu, menina? Como é que você faz uma coisa dessas? Foi encher a vizinha sacoleira com o seu dinheiro, pagou caro por colcha chique que eu não preciso? Você perdeu completamente o juízo? Estamos todos aqui nesse miserê (sic!), e você vai gastar dinheiro comprando uma colcha cara que nem orna com a minha casa caindo aos pedaços? Você é realmente uma tonta! Não tô acreditando que você fez isso!"

A menina, conhecida por sua emotividade além do normal, já não conseguia conter as lágrimas. As irmãs, menores, apenas observavam a cena com os olhos arregalados, perfiladas na parede, contendo a respiração para não serem notadas e aumentarem a fúria materna E quanto mais a menina chorava, mais a mãe proferia impropérios e se exaltava, até que abriu a gaveta do criado-mudo, pegou uma tesoura e começou a picotar a colcha de matelassê azul que lembrava o céu. Em poucos minutos, ao som dos soluços da menina, a mãe transformara a colcha em um amontoado de retalhos que foram se espalhando pela cama e pelo chão.

O pai entrou no quarto, observou a cena, resmungou alguma coisa, fez um sinal desaprovador com a cabeça, virou as costas e voltou pra cadeira da cozinha;
A mãe permanecia sentada na cama, e a essa altura também chorava, como que com raiva do próprio descontrole;
A menina, desconsolada, conseguiu apenas pegar sua bolsa e sair sem rumo.

Derrubou todas as lágrimas que conseguiu naquele dia, pelas ruas desconhecidas por onde andou. Era 2o. Domingo de Maio, era Dia da Mães, era "o dia especial" tão aguardado, e a menina passou longe da mãe, chorando e tentando encontrar algum motivo pra voltar pra casa. Voltou ao anoitecer, temerosa dos perigos da noite, e nunca mais naquela casa ninguém proferiu uma única palavra sobre o ocorrido.

... ... ...

Se você conseguiu ler tudo até aqui, é provável que esteja fazendo julgamentos, especialmente à mãe da menina, algo como "onde já se viu uma mãe fazer uma coisa dessas com a própria filha", etc.

Se é algo assim que você está pensando, PARE, por favor. Devo dizer que a menina jamais permitiria que alguém sequer pensasse qualquer coisa negativa a respeito de sua mãe. Porque no fundo, a menina sempre soube que a mãe teve seus motivos pra agir daquela maneira. Porque no fundo, a menina sempre soube que a mãe tinha razão, por mais que não tenha sido feliz na maneira que escolheu para demonstrar o que queria.

Porque, sim, o que a mãe da menina queria era apenas ensinar-lhe o valor das coisas, a importância de se estabelecer prioridades, a seriedade da vida. Era amor, o mais puro amor de mãe, aquele que vem através dos carinhos mas que também vem através dos castigos. Era amor de mãe, em estado bruto e talvez um pouco fora da medida, mas ainda assim era amor.

A menina nunca contou essa história pra ninguém. Apenas as testemunhas oculares que participaram da cena sabem o que aconteceu naquele quarto humilde naquela manhã de domingo. A menina nunca falou sobre isso justamente por temer os julgamentos que fariam contra sua mãe, e se por um lado ela pôde suportar a frustração de sua tentativa de surpreender através de um presente, por outro lado jamais poderia suportar a ideia de sequer imaginar qualquer pensamento alheio que desabonasse sua rainha.

A menina carregou essa história dentro de si em todos os dias que se seguiram, e a carrega até hoje. E é claro que isso teve um peso, que foi se manifestando de maneiras diferentes ao longo dos anos. A menina desenvolveu comportamentos obsessivos, a menina desenvolveu transtornos, a menina desenvolveu compulsões, a menina traumatizou. Mas lutou a vida inteira para que ninguém nunca percebesse nada, porque, afinal, tinha que proteger a mãe de qualquer culpa.

Às vezes a menina pensa como teria sido se aquela manhã de domingo tivesse um roteiro diferente. Muitos anos já se passaram, e muitas conjecturas a menina fez. Imaginou como teria sido se não tivesse comprado nenhum presente. Imaginou como teria sido se tivesse dado apenas dinheiro à mãe. Imaginou como teria sido se tivesse comprado uma colcha branca, ao invés de uma azul que lembrava o céu. Imaginou todas as possibilidades que conseguiu. E em todas elas, a única certeza que a menina conseguiu obter foi de que sua mãe sempre lhe amou, até naquele dia em que o descontrole machucou amor.

A menina acha que ela de fato errou ao deixar de avaliar a situação da época com mais racionalidade. Hoje ela entende que não faria sentido uma colcha azul que lembrava o céu sobre uma cama que tinha latas de neston como pés e um colchão rasgado sobre o estrado. Hoje ela entende que o dinheiro gasto com aquele presente poderia ter beneficiado a família de outra maneira menos supérflua. Hoje ela entende tudo isso.

Ela só acha que talvez a mãe pudesse ter disfarçado um pouco sua insatisfação com o presente na hora, pra não frustrar a expectativa dela - porque a menina acha que esse negócio de frustrar expectativa é muito sério. A menina já pensou, inclusive, que se pudesse ousaria dizer isso à mãe. Que também pelo amor, ela podia ter correspondido a expectativa da filha. E depois, com calma, explicar-lhe por que tinha sido uma má ideia. A menina ousaria dizer à mãe que acha, inclusive, que se suas expectativas não tivessem sido frustradas ela teria aprendido outras lições além da que aprendeu pela dor daquele momento, e que nem ela e nem a mãe teriam carregado essa história tão pesada para o resto da vida.

Mas isso é o que a menina acha. É apenas o que ela acha. É apenas o que ela sente.

2 comentários:

LaDespistada disse...

Ah, minha menina!!! Dá cá um abraço! Q bom q vc voltou!

Tatiana Kielberman disse...

Olá, querida!!

Adorei conhecer seu blog!

Agora vou te ler sempre...

Beijocas!