segunda-feira, 20 de abril de 2009

Uma velha regrinha

"O seu direito começa onde termina o do outro... E vai até onde começa o do próximo..."

Será que alguém ainda se lembra dessa velha regrinha?

Não, né? Certeza que não! Impressionante como o mundo de hoje é povoado de pessoas cada vez mais mal educadas... Impressionante!

No mundo do Eu,Eu,Eu + Meu Umbigo + Eu,Eu,Eu, regras simples e óbvias, princípios mínimos e básicos de educação para a convivência pacífica em sociedade são jogados ao vento, pisoteados em praça pública, e às vezes eu sinto uma resignação tão grande das pessoas diante deste cenário que, confesso, tenho medo daquilo que pode estar por vir.

Sabadão de feriado prolongado, eu não fui viajar, não tinha nenhum grande plano, então como sempre faço (junto com uma boa parcela da classe trabalhadora) pretendia dormir até mais tarde, curtir uma preguicinha matinal, aproveitar o clima mais ameno enrolada no edredon, assistir à Final da Super Liga de Vôley na cama, coisas assim.

Não deu. Coisa de 09h30 / 10h00 fui abruptamente acordada por uma gritaria vinda do meu prédio. Meio confusa, achei que fosse uma briga. Tentei distinguir melhor as vozes e não entendi nada, abri a janela e dei uma espiada, tudo vazio, mas as vozes ficaram mais nítidas:


"_Em nome de Deus, em nome do Senhor! [aleluia!] Que todo o mal saia da vida deste irmão [aleluia!] Em nome do Senhor! Que o Inimigo não possa vencer [aleluia!] porque o nosso Deus é força! Saia! Saaaaaaaaaia! Todo o mal, saiaaaaaaa!..." (vozes histéricas ao fundo gritam, grunhem, bradam, e dizem incessantemente, todas juntas, mas sem nenhuma sincronia: Aleluia! Aleluia, irmão! Aleluia!)."


Vejam bem. Antes de qualquer recriminação ao que eu possa escrever aqui, saibam que não estou traduzindo estes trechos do que ouvi de maneira pejorativa. Não mesmo, jamais!

Só que preciso dizer que estas pessoas não estavam simplesmente orando, rezando, conversando. Estas pessoas estavam gritando... histéricamente, descontroladamente, e quanto mais as pessoas gritavam, mais o condutor da coisa toda - o pastor, suponho, ou algo que o valha - berrava, para que sua voz de "saiaaaaaaaaa, demônio!" se sobrepusesse às demais.

Vou repetir tudo aquilo que falo todas as vezes que abordo assuntos religiosos aqui: Respeito a fé das pessoas mais do que qualquer coisa, respeito muito mesmo, e nenhuma das minhas colocações deste post pretendem ser ofensivas ou discriminatórias a quem quer que seja, e eu inclusive entendo que as emoções provocadas pelos cultos religiosos possam levar as pessoas a expressar seus sentimentos de maneiras diversas - inclusive bradando com maior veemência essas interjeições religiosas.

Só que é duro imaginar que por força dos sentimentos religiosos de meia dúzia de pessoas, um prédio inteiro tenha que participar involutariamente de um culto em pleno sábado de manhã. Aí que está o problema, na minha humilde opinião.

Eu não podia reclamar porque teoricamente já passava do "horário do silêncio", já era quase 10 horas da manhã, então teoricamente o barulho já estava liberado. Mas aí eu pergunto: Isso significa que a pessoa pode convocar um culto no seu apartamento, considerando essas possíveis exaltações, sabendo que mora em um prédio onde pessoas que trabalham podem estar querendo descansar um pouco mais na manhã de sábado? Poder, ela pode... mas será que, considerando a regrinha básica que eu citei acima, isso deveria mesmo acontecer?

Não existem lugares adequados para se celebrar cultos religiosos? Não existem os templos, as igrejas? E se este culto "residencial" fosse mesmo necessário, precisava ser num sábado de manhã?

É claro que nada é proibido, o vizinho em questão estava no direito dele, praticando a religião dele, e ninguém tem nada a ver com a vida dele. Mas... e onde começam os direitos dos outros? Esta parte da regrinha sobre direitos foi observada?

Receio que não. E digo isso porque - sem querer ofender ou generalizar - a maioria dos evangélicos se comporta assim, como se a prática de sua religião fosse a justificativa para qualquer atitude, até aquelas que podem não ser assim tão "educadas".

O culto no apartamento do vizinho durou cerca de 40 minutos. Mesmo sem um pingo de vontade, eu acompanhei cada detalhe, o som entrava pelo meu apartamento sem que eu tivesse como fugir dele. E a única coisa que eu queria era um pouco de silêncio. Não deu.

No mesmo dia, na verdade na madrugada de sábado para domingo, eu estava acordada - notívaga que sou - esperando o começo do GP da China de Fórmula 1. De repente começo a escutar outra gritaria, dessa vez um pouco mais longe, mas com o silêncio comum da madrugada, mesmo longe o som era bem nítido e invadia mais uma vez cada cômodo do meu apartamento.

Desliguei o som da TV para entender o que ocorria do lado de fora, e depois de prestar atenção por 2 minutos constatei que era mais uma reunião evangélica exaltada, dessa vez na madrugada.

Não era aqui no prédio, mas certamente em alguma das muitas igrejas evangélicas existentes nos arredores. Reuniam-se em vigília e, ignorando completamente todas as pessoas da vizinhança (bairro absolutamente residencial) que pudessem estar querendo dormir, cantavam em alto e bom som, com o líder bradando mensagens evangelizadores no microfone.

Inacreditável. Inacreditável. Inacreditável.

4 horas da madrugada e alguns evangélicos reunidos em vigília acham que podem acordar toda a vizinhança sob o argumento de que estão pregando a "palavra de Deus"???

Entendem agora o que eu quero dizer?

Falo de pessoas evangélicas com conhecimento de causa, pois como já contei aqui outras vezes eu mesma sou considerada uma "ovelha desgarrada", já que frequentei a Igreja Batista durante toda a infância e começo da adolescência.

Conheço pessoas evangélicas o suficiente para saber do que estou falando, e eis uma verdade: Eles se julgam (se não todos, a grande maioria), autorizados a fazer qualquer coisa, desde que seja "em nome de Deus".

Podem incomodar as pessoas em manhãs de sábado, podem tocar à sua porta nas manhãs de domingo e interromper o seu café da manhã em família, podem realizar cultos durante a madrugada e fazer suas pregações com o som amplificado, podem ficar horas falando sobre religião com você mesmo quando você diz que não quer discutir o assunto, tudo porque se julgam autorizados por Deus a fazer qualquer coisa em nome da sua Igreja.

Eu tenho uma colega que por acaso também é vizinha e é evangélica, e como a conheço desde menina, ela se lembra de mim como uma "irmã" que pertencia ao rebanho de Deus. Desde que soube que eu sou uma "desviada", dedica grande parte da sua vida a tentar me recolocar no caminho do bem (sic!).

Já tentou me levar para a igreja de todas as formas possíveis, eu sempre me esquivava dos convites tentando não ser grosseira, mas a coisa só funcionou mesmo no dia em que eu disse com todas as letras que não adianta convidar, que eu nunca teria tempo, nem nunca poderia, nem nunca ia querer ir à igreja, que não adianta ninguém insistir, porque se eu tiver que ir um dia, vou pela minha vontade, e não pela vontade de alguém que acha que tem que me arrastar para o caminho que julga certo!

Tive que ser dura para que ela entendesse que eu não estava curtindo aquela insistência, aquela perseguição. E mesmo assim ela não entendeu exatamente o que eu quis dizer. Parou de me convidar, mas toda vez que me encontra diz que está rezando para que os espíritos ruins saiam de perto de mim e deixem a minha vida seguir o caminho da paz, o que me leva a concluir que ela imagina que eu esteja possuída ou algo assim.

Tudo porque acha que tem o direito de me incomodar todas as vezes que nos encontramos para falar de sua religião, sem nem cogitar a hipótese de que eu posso não querer, eu posso não gostar, eu posso inclusive praticar outra religião!

Mas taí uma coisa que evangélico não entende: Que as pessoas podem ter outra religião e estarem felizes assim. Eles acreditam que são os donos supremos do caminho para os céus, e que qualquer outra religião que não a deles pode te levar para qualquer lugar, menos para o céu. Julgam-se tão superiores que acham que qualquer pessoa que pratique outros cultos e adore outros deuses (ou até o mesmo Deus deles) não está no caminho certo, e é uma pessoa que precisa ser evangelizada.

Essa prepotência me irrita profundamente. Porque abre caminho para a falta de respeito à liberdade do próximo, ao direito de escolha do próximo, ao espaço do próximo.

E isso, minha gente, é no mínimo uma grande falta de educação! Não é nada nobre perturbar o descanso alheio com cultos residenciais quando se sabe que haverá gritaria e exaltação. O mínimo de bom senso levaria essas pessoas a realizar o tal culto no interior da igreja, ou em outro horário, mas eles acreditam que "sempre é oportunidade de evangelizar", então doa a quem doer, incomode a quem incomodar, saem gritando os seus "aleluias" por aí sem o menor respeito a quem possui outra opinião.

Não é nada nobre perturbar o sono de um bairro inteiro em plena madrugada gritando mensagens bíblicas no microfone, com uma igreja inteira entoando alguma canção religiosa, provocando uma barulheira tremenda capaz de acordar até o morador do último andar de um prédio a 2 quarteirões. Mas na cabeça deles cada "alma" acordada pode ser "tocada" pelo Divino, então eles continuam, porque o "escudo" que os protege é a religião, e em nome dela tudo é permitido.

Ninguém parou pra pensar que entre os incomodados pode estar um budista que está meditando, um católico que acordará muito cedo para participar da missa, um umbandista que sofreu grande desgaste numa celebração e precisa descansar, ou simplesmente um ateu que não acredita em nada disso e simplesmente não quer ser importunado com esses assuntos.

Ningúem respeitou o direito de próximo, ninguém sequer cogitou haver algum direito em favor do próximo, e isso, caros leitores, é muito primitivo, é muito triste, é muito degradante.

Nada do que foi escrito aqui é contra ou a favor da religião X, Y ou Z. É apenas um manifesto de alguém que já não aguenta mais viver num mundo onde as pessoas perderam o mínimo de noção de respeito ao próximo, é apenas um manifesto de alguém que está de saco cheio de tanta manipulação religiosa, é apenas um manifesto de alguém que adoraria viver num mundo de mais respeito e menos arrogância.

Cada um é cada um. E tem o direito de viver do seu jeito, desde que lembre-se de onde começam os direitos dos próximos.

Não é super simples?

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